quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

acordou perturbada




“Ou enfim: o meu amor é «um órgão sexual de uma sensibilidade espantosa que [vibraria] fazendo-me dar gritos atrozes, os gritos de uma ejaculação grandiosa mas fedorenta, [presa do] dom extático que o ser faz de si próprio enquanto vítima nua , obscena […] diante das enormes gargalhadas das prostitutas».
Bataille citado por Roland Barthes, in Fragmentos de um discurso amoroso






Acordou perturbada com um sonho bom mas ao mesmo tempo 
sentindo o peito sufocado como se o estivessem a apertar. 
O sono não voltou, apesar do esforço em por de parte as memórias. Agora já não era como dantes, mas, porque raio haveria de reprimir as imagens, a perturbação até era boa, o aperto no peito sinal de que, afinal, sentia alguma coisa. 
Passou uma água pela cara e voltou a lavar os dentes para tentar tirar o sabor fétido que tinha na boca.

Desceu ao rés do chão e foi buscar uma cadeira à sala de jantar. Sentou-se ao contrário, com os braços apoiados sobre as costas a contemplar o sofá da sala de estar. Longo macio coberto de almofadas.

As  memórias do que vivemos fazem de nós o que somos, para o bem e para o mal, mesmo as memórias que tentamos reprimir.

Se o sofá tivesse memória... mas a memória daquele sofá, bem como das outras coisas, acaba por ser uma personificação que fazemos, um reflexo do que está na mente das pessoas.

Deu por si a entrelaçar os dedos das mãos. Suspirou e deixou-se levar pelas visões que a mente lhe retroprojectou na íris, das vezes em que ... ah, se o sofá falasse ... estremeceu.

Sem dar conta disso, a respiração mudou, sentiu-se quente, tocava-se já prazeirosamente no peito, no interior das coxas, no sexo, levando os dedos à boca, humedecendo a eros que já tinha disparado com a visão que os seus olhos viam já projectada pela mente as muitas e diferentes horas passadas no sofá em repetidas investidas e ondas de prazer orgásmico repetiram-se na sua mente, como ecos, replicando sensações vividas no corpo, na carne voltando à mente replicando, auto-alimentando-se como um eco de outro eco e outro eco mais ...



Era sempre assim, este sonho bom que lhe tirava o sono, o seu corpo recordava o sentir daquele crescendo de loucura e de mel derretido em corpos ferventes parecendo só um, em amalgama feita de dois corpos... o sofá tinha sido mais que qualquer dos outros locais da casa o lugar onde mais se amaram e mais vezes até, quase, à exaustão, sem nunca perder o tino, o sentido do que eram, esticando o tempo, esticando o sentir, sempre até para lá do limite mas, ao mesmo tempo, nunca transpondo os limites se é que tal coisa é possível...

Gritou e quando conseguiu quase sentiu tudo de novo, num longo arrepio, porém era vazio.
Estava só.


O sofá partiu no dia seguinte.