“Ou enfim: o meu amor é «um órgão sexual de uma
sensibilidade espantosa que [vibraria] fazendo-me dar gritos atrozes, os gritos
de uma ejaculação grandiosa mas fedorenta, [presa do] dom extático que o ser
faz de si próprio enquanto vítima nua , obscena […] diante das enormes
gargalhadas das prostitutas».
Bataille citado por Roland Barthes, in Fragmentos de um
discurso amoroso
Acordou perturbada com um sonho bom mas ao mesmo tempo
sentindo o
peito sufocado como se o estivessem a apertar.
O sono não voltou, apesar do
esforço em por de parte as memórias. Agora já não era como dantes, mas, porque
raio haveria de reprimir as imagens, a perturbação até era boa, o aperto no
peito sinal de que, afinal, sentia alguma coisa.
Passou uma água pela cara e
voltou a lavar os dentes para tentar tirar o sabor fétido que tinha na boca.
Desceu ao rés do chão e foi buscar uma cadeira à sala de jantar.
Sentou-se ao contrário, com os braços apoiados sobre as costas a contemplar o
sofá da sala de estar. Longo macio coberto de almofadas.
As memórias do que vivemos fazem
de nós o que somos, para o bem e para o mal, mesmo as memórias que tentamos
reprimir.
Se o sofá tivesse memória... mas a memória daquele sofá, bem como das
outras coisas, acaba por ser uma personificação que fazemos, um reflexo do que está na mente das
pessoas.
Deu por si a entrelaçar os dedos das mãos. Suspirou e deixou-se levar
pelas visões que a mente lhe retroprojectou na íris, das vezes em que ... ah,
se o sofá falasse ... estremeceu.
Sem dar conta disso, a respiração mudou, sentiu-se quente, tocava-se já
prazeirosamente no peito, no interior das coxas, no sexo, levando os dedos à
boca, humedecendo a eros que já tinha disparado com a visão que os seus olhos
viam já projectada pela mente as muitas e diferentes horas passadas no sofá em
repetidas investidas e ondas de prazer orgásmico repetiram-se na sua mente,
como ecos, replicando sensações vividas no corpo, na carne voltando à mente
replicando, auto-alimentando-se como um eco de outro eco e outro eco mais ...
Era sempre assim, este sonho bom que lhe tirava o sono, o seu corpo recordava o sentir
daquele crescendo de loucura e de mel derretido em corpos ferventes parecendo
só um, em amalgama feita de dois corpos... o sofá tinha sido mais que qualquer dos outros
locais da casa o lugar onde mais se amaram e mais vezes até, quase, à exaustão,
sem nunca perder o tino, o sentido do que eram, esticando o tempo, esticando o sentir, sempre até para lá do limite mas, ao mesmo tempo, nunca transpondo os
limites se é que tal coisa é possível...
Gritou e quando conseguiu quase sentiu tudo de novo, num longo arrepio, porém era vazio.
Estava só.
O sofá partiu no dia seguinte.