Sentiu-se gradualmente despertar, com aquela sensação quente no
estômago de satisfação que tanto gostava, apercebeu-se depois que uma mão
suavemente lhe afagava a cabeça, pausadamente, percorrendo as ondas do cabelo
com os dedos.
Os olhos abriram-se despertos numa explosão que misturava aquele
prazer gostoso com o espanto de se aperceber que aquela mão não seria
própriamente a sua, seria antes de outro alguém que, sem razão aparente, lhe estava
a fazer festas na cabeça.
Mais do que isso, apercebeu-se mesmo antes de olhar para lá, que quem
quer que fosse estava algo debruçada sobre si e a olha-lo fixamente.
Vira-se, olha e...
-- Menina, está bem?
-- Eu estou, muito bem por sinal, e tu? Sentes-te melhor?
-- Pois... eu nem por isso. Porque razão me está a fazer festas na
cabeça? Não nos conhecemos.
-- Eu sei, mas estavas aí a dormir sossegado e depois como te vi a
chorar, ainda pensei acordar-te, mas resolvi acalmar-te, e só me ocorreu
fazer-te o que faço ao meu irmão mais novo quando tem pesadelos. Sentes-te
melhor?
-- HUMPF (pôs os olhos no chão) ... e eu disse alguma coisa durante o
sono, alguma coisa que se percebesse?
-- Nem por isso, por acaso grunhiste mais que outra coisa qualquer.
Como te sentes?
-- Nada bem... normal... não sei. De todo modo obrigado. O que a levou
a fazer isso? Não nos conhecemos de lado nenhum.
--- Por nada, tenho a mania que sou a Madre Teresa de Calcutá, pelo
menos é o que dizem as minhas amigas. Estás a gostar?
Só naquele instante se tinha apercebido que ela, não só ainda não
tinha tirado os olhos dele, como a mão permanecia no mesmo pausado ritmo em
cima da cabeça.
-- Já pode tirar a mão da minha cabeça.
-- Mas não esás a gostar? Se não estiveres a gostar eu tiro.
-- Nada disso, até bastante, mas ...
-- Pronto. Já tirei. (sentou-se direita)
Lembrou-se então que a tinha visto na central de camionagem, e depois
quando se sentou. Verificou o lugar quando entrou, e o bilhete, e constatou que
ela estava sentada no seu lugar. Ela era uma rapariga bonita, loira, olhos
claros, vestido branco com flores amarelas. Dormitava e pareceu ficar
atrapalhada quando se apercebeu que se tinha sentado no lugar dele. Ele
sossegou-a, deixou-a estar e sentou-se no lugar dela. Adormeceu fácil, com o embalo, nada fazendo
supor que iriam estar à conversa cerca de duas horas depois, e algumas centenas
de quilómetros dali.
A luz era fraca, início da noite, e ela parecia-lhe quase negra, pela
luz e porque estava bastante bronzeada, o que fazia com sobressaíssem ainda
mais os seus olhos, autênticos faróis.
-- É possível, isso que diz sobre ser uma Madre Teresa, mas isso não
responde à minha pergunta. O que a levou a fazer isso?
-- Não sei, pareceste aflito, já tinha reparado no teu olhar triste lá
fora, cara séria. Não sei bem explicar, senti que tinha de fazer isso. Se te
incomodou tanto peço desculpas. Não percebo porquê, mas peço.
-- Não peças desculpa. Estendeste a tua mão para ajudar alguém.
Obrigado pelo teu carinho. É inesperado. Fico sem palavras.
De facto tenho alguns problemas que me atormentam e... se calhar tenho
pesadelos, não me tinha apercebido, já não me basta ressonar, enfim...
-- O teu ressonar é um bocado chato, acordei com ele, mas ainda me ri
com a senhora senhora ali à frente do 17.
-- Ah?? Porque raio??
-- Fazes lembrar uma mota que o meu avô tinha.
--- Obrigado pelo elogio.
-- A sério! Eu cá achei giro.
A conversa foi amolecendo pelo caminho, o autocarro já estava a subir
a região montanhosa e o frio, apesar do aquecimento ligado, foi tomando conta
de todos.
Quase de repente ele levanta-se, estica-se para chegar à prateleira
por cima dos assentos, e coloca o seu sobretudo por cima dela, aconchegando-a.
-- Obrigada. Estou arrepiada de frio.
-- É costume nesta zona, nesta altura do ano. O aquecimento do autocarro
não consegue compensar a temperatura a tempo.
-- Fazes muitas vezes esta viagem?
-- Algumas. E tu?
Algo mudou. Ele que era sempre tão formal, sem se aperceber nem saber
porquê, tinha passado a tratá-la na 2ª pessoa. Pareceu que, quase, queria confiar
nela.
-- Eu não, é a primeira vez, vou passar uns dias a casa de uma amiga.
Sentiu voltar-lhe o sono pesado, e a conversa quedou-se quando ele pegou
no sono outra vez. Acordou algum tempo depois quando o autocarro parou numa área de serviço, para descanso dos condutores. Com as luzes acesas reparou
melhor no rosto dela. Já dormia, toda encolhida, sorria, quase, com os seus
dois lábios fininhos. O vestido dela tinha-lhe subido um pouco revelando uma
das bem torneadas coxas, quase quase até á curva da nádega, tudo bem feito. Com
todo o cuidado que conseguiu, tapou-a o mais que pode com o sobretudo, que era
bem comprido.
Ela agarrou-lhe na mão, rodou, e deitou-se sobre o seu colo, agarrou-se
ao seu peito, e enroscou-se encostando nele o rosto. Ele ficou sem jeito.
A luz do autocarro apagou-se, e naquele instante e naquela luz ténue,
apercebeu-se que um daqueles dois olhos claros, um daqueles faróis, o olhava,
de baixo para cima.
Ela subiu mais um pouco, encostou o rosto quente ao seu pescoço e
apertou-o um pouco mais.
Ele não sabia o que fazer.
O que se passou a partir daí não tem bem memória.
Aconchegou-a para junto dele, ela encolheu ainda mais as pernas, por baixo
do sobretudo, e ele segurou-lhe os pés, nus, que aqueceu com a sua mão.
Mais quente, mais aconchegada, a respiração dela mudou para um ritmo
inaudível.
Beijou-o no pescoço, e subiu mais um pouco em beijos mais quentes e
cada vez mais arrastados, e sumarentos.
A boca dele estava mesmo ali à sua espera.
Ele não se fez rogado, enroscados um no outro, o beijo selou-se num nó
perfeito de lábios e línguas e calores húmidos e sabores.
As mãos de ambos já se encontravam perdidas nas palavras tácteis dos
afectos, afagos ténues, determinados e direccionados, quentes e impetuosos.
Sôfregos.
Tentaram até ao limite não se fazerem ver nem ouvir, abafados pelo
silêncio das suas bocas, e pelo troar
barulhento do autocarro que os parecia ajudar na subida.
Os seus olhos, desnecessários no sentir, por vezes abertos, apenas
tinham relampejos de consciência nas
ocasionais luzes da estrada, que davam flashes da cena, como num filme negro.
Trocaram nada mais que silêncios.
Entregaram-se só às palavras trocadas pelo calor do corpo e do toque
das mãos.
Só se tocaram.
Em todos os bocados de cada um, mas só se tocaram.
Emudecidos mas sempre, em ruidoso sentir.
Quase até ao fim da viagem, já o sol ia alto, continuaram o mais
apertados que conseguiram, sem trocar palavra, com as mãos tocando no corpo um
do outro, não importava onde, e ele sempre a afagar-lhe os pés. E sempre
olhando, ele para o azul claro celeste, e ela para uma estranha misturada verde
e castanha que não conseguia perceber.
A viagem chegou ao fim e lá retomaram as respectivas e bem comportadas
aparências. A senhora do 17 deu uma espreitada sorrateira para trás e emitiu um
sorriso quase imperceptível e matreiro.
Ela dá-lhe um beijo de supetão e pede-lhe desculpa.
Ele olha para ela sem perceber.
O autocarro ainda mal tinha parado e ela sai disparada do lugar.
-- Estão à minha espera.
Ele não foi atrás.
Saiu e antes de recolher a mala viu que ela abraçava uma rapariga, a
amiga por certo, e viu-as desaparecer rua abaixo.
Depois apercebeu-se que ... nem
o nome tinham dito um ao outro.
Dela apenas dela tinha ficado o cheiro e o sabor.
E a memória.