Considerava-se um tipo pouco entendido nas artes, mesmo até porque, no
seu entender simplista a realidade era o que era e não se podia dar a devaneios
de artista que representa coisas que não existem e se existem não são de outra
forma que a real. Era aliás conduzia a
sua vida, dentro das barreiras limitadoras da realidade, procurando não se
desviar desse caminho.
Aquele quadro era diferente. Despertou-lhe a atenção e parecia-lhe que
os seus próprios olhos se permitiam a devaneios descontrolados e a um conjunto
de ideias quase certezas de uma memória que pensava não fazer sentido ou
existir até.
Era memória de algo que não se estava a recordar bem e ele,
lembrava-se sempre bem de tudo, orgulhava-se da sua boa memória, inclusivamente das
memórias mais antigas, de criança pequena até.
Observava o quadro como se se recordasse daquela cena específica que o
quadro representava. Muito estranho, pensou, não se recordar.
...
Naquele dia, levantou-se mais cedo, tinha vontades de que as horas passassem
depressa, tinha a ideia e urgência em outro lugar. Arranjou-se para sair, não
iria voltar a casa, pelo menos, nesse dia.
O dia passou arrastado, mas os ânimos estavam altos, e com maior ou
menor dificuldade, saiu à hora destinada, para não perder o comboio.
Chegou já noite era há algumas horas, densa até. Ela estremeceu quando
o viu sair do comboio, entre a penumbra de uma plataforma mal iluminada e uma
noite de nevoeiro cerrado. Até parecia cena de filme antigo, de comboio a vapor
e tudo.
Ela nunca o tinha visto assim vestido tão ... bem, de alto a baixo de
negro, e aquela cara com um sorriso escancarado de orelha a orelha. Cabelo
farto. Somado a isso a antecipação nervosa do reencontro planeado ao pormenor,
deixaram-na, logo ali, naquele impróprio lugar, os joelhos a tremer ainda mais.
Cumprimentaram-se num quase abraço, com dois beijos nervosos no rosto.
Saíram dali devagar mas apressados.
Um autocarro lesto levou-os depressa ao centro. O resto a pé, era
perto.
Entraram na hospedaria, que mais fazia lembrar uma espécie de hotel de
vão de escada, remedeio tratado por ele, pela necessidade de procurar um lugar
pouco habitual, livre de suspeitas, e longe dos habituais motéis onde afinal
toda a gente, por mais que se queira esconder, se acaba por encontrar.
Só no interior se aperceberam, o quanto era exíguo e acanhado, mas ao
menos razoavelmente limpo.
O nervosismo cedo cedeu lugar à certeza firme de mais um reencontro, e
as palavras calaram-se nos gestos e na sofreguidão dos lábios, e línguas
sedentos de sentir.
Não sem cuidados despiram-se e seguiram para o acanhado poliban onde,
gracejaram, que nem um esqueleto magrinho cabia mas, como a vontade aguça o
engenho, couberam tão bem como um contorcionista numa caixa.
O banho foi longo, no reconhecimento da pele na pele cujas saudades
não esqueciam caminhos.
Cuidadoso, atencioso e cioso de pormenores, demorou-se mais por um só
sítio, quase um lugar-tabu, lento e farto no sabão ... mas sempre com mil
cuidados para evitar as cócegas.
Sem demais conversas que não as de olhares e gestos mudos e
ensurdecedores na erotização sublimada pelo toque, pelo ritmo da respiração e
as visões de olhos abertos e entreabertos e de luzes flashadas de carros na rua
e do neón que volta não volta soluçava uma espécie de relâmpago de tom verde
nos seus corpos suados.
A noite esticou-se de sentir e de tempo não contado e os seus
movimentos e toques e perderam-se em miríades de pequenos prazeres que foram
aumentando em descontrolado prazer e ...
Ela não conseguiu calar um grito por entre o arrepio prolongado no
corpo.
Ele sorriu por entre um beijo mais carinhoso.
E tu?
E ela sentiu que ele se deixou ir, seguir descontrolado.
Ele encontrou forças ora desvanecidas aos poucos, na concentração
encontrou o foco, e fez-se sentir no quase parado movimento, com o seu corpo
hirto e suado e arrepiado de satisfação.
Ela beijou-lhe a boca de forma diferente, o rosto e os olhos , e os
ombros, abraçando-o quente.
Ficaram ali até que acordaram de manhã feita com o sol no rosto ainda
agarrados sem querer largar.
...
Entrou na loja e leu: Infinito, manuscrito a lápis grosso na armação
de madeira da tela.
Depois reparou com mais atenção e .... reconheceu a assinatura e a
data.