domingo, 21 de julho de 2013

Aquele quadro



Considerava-se um tipo pouco entendido nas artes, mesmo até porque, no seu entender simplista a realidade era o que era e não se podia dar a devaneios de artista que representa coisas que não existem e se existem não são de outra forma que a real.  Era aliás conduzia a sua vida, dentro das barreiras limitadoras da realidade, procurando não se desviar desse caminho.
Aquele quadro era diferente. Despertou-lhe a atenção e parecia-lhe que os seus próprios olhos se permitiam a devaneios descontrolados e a um conjunto de ideias quase certezas de uma memória que pensava não fazer sentido ou existir até.
Era memória de algo que não se estava a recordar bem e ele, lembrava-se sempre bem de tudo, orgulhava-se da sua boa memória, inclusivamente das memórias mais antigas, de criança pequena até.
Observava o quadro como se se recordasse daquela cena específica que o quadro representava. Muito estranho, pensou, não se recordar.


...


Naquele dia, levantou-se mais cedo, tinha vontades de que as horas passassem depressa, tinha a ideia e urgência em outro lugar. Arranjou-se para sair, não iria voltar a casa, pelo menos, nesse dia.
O dia passou arrastado, mas os ânimos estavam altos, e com maior ou menor dificuldade, saiu à hora destinada, para não perder o comboio.

Chegou já noite era há algumas horas, densa até. Ela estremeceu quando o viu sair do comboio, entre a penumbra de uma plataforma mal iluminada e uma noite de nevoeiro cerrado. Até parecia cena de filme antigo, de comboio a vapor e tudo.
Ela nunca o tinha visto assim vestido tão ... bem, de alto a baixo de negro, e aquela cara com um sorriso escancarado de orelha a orelha. Cabelo farto. Somado a isso a antecipação nervosa do reencontro planeado ao pormenor, deixaram-na, logo ali, naquele impróprio lugar, os joelhos a tremer ainda mais.
Cumprimentaram-se num quase abraço, com dois beijos nervosos no rosto.
Saíram dali devagar mas apressados.
Um autocarro lesto levou-os depressa ao centro. O resto a pé, era perto.

Entraram na hospedaria, que mais fazia lembrar uma espécie de hotel de vão de escada, remedeio tratado por ele, pela necessidade de procurar um lugar pouco habitual, livre de suspeitas, e longe dos habituais motéis onde afinal toda a gente, por mais que se queira esconder, se acaba por encontrar.
Só no interior se aperceberam, o quanto era exíguo e acanhado, mas ao menos razoavelmente limpo.

O nervosismo cedo cedeu lugar à certeza firme de mais um reencontro, e as palavras calaram-se nos gestos e na sofreguidão dos lábios, e línguas sedentos de sentir.
Não sem cuidados despiram-se e seguiram para o acanhado poliban onde, gracejaram, que nem um esqueleto magrinho cabia mas, como a vontade aguça o engenho, couberam tão bem como um contorcionista numa caixa.
O banho foi longo, no reconhecimento da pele na pele cujas saudades não esqueciam caminhos.
Cuidadoso, atencioso e cioso de pormenores, demorou-se mais por um só sítio, quase um lugar-tabu, lento e farto no sabão ... mas sempre com mil cuidados para evitar as cócegas.

Sem demais conversas que não as de olhares e gestos mudos e ensurdecedores na erotização sublimada pelo toque, pelo ritmo da respiração e as visões de olhos abertos e entreabertos e de luzes flashadas de carros na rua e do neón que volta não volta soluçava uma espécie de relâmpago de tom verde nos seus corpos suados.
A noite esticou-se de sentir e de tempo não contado e os seus movimentos e toques e perderam-se em miríades de pequenos prazeres que foram aumentando em descontrolado prazer e ...

Ela não conseguiu calar um grito por entre o arrepio prolongado no corpo.
Ele sorriu por entre um beijo mais carinhoso.
E tu?
E ela sentiu que ele se deixou ir, seguir descontrolado.
Ele encontrou forças ora desvanecidas aos poucos, na concentração encontrou o foco, e fez-se sentir no quase parado movimento, com o seu corpo hirto e suado e arrepiado de satisfação.
Ela beijou-lhe a boca de forma diferente, o rosto e os olhos , e os ombros, abraçando-o quente.

Ficaram ali até que acordaram de manhã feita com o sol no rosto ainda agarrados sem querer largar.


...



Entrou na loja e leu: Infinito, manuscrito a lápis grosso na armação de madeira da tela.
Depois reparou com mais atenção e .... reconheceu a assinatura e a data.