quinta-feira, 13 de setembro de 2012

A Vizinha







Parecia uma mulher desleixada consigo própria, com o cabelo desorganizado e a precisar de arranjo, a cara deslavada, sem cor, roupa um pouco larga até, mãos secas e gretadas, algo "frieirentas", mas na sua boca, na sua boca portava garbosamente, e portava sempre, um sorriso de orelha a orelha, sorriso honesto e profundamente sincero que ostentava para a filha pequena que, pacientemente, trazia algures por entre as mãos cheias de sacos de supermercado.
Reparou nela quase por acaso, quase em querer, pelo canto do retrovisor, um dia quando esperava em cima do passeio por uma vaga para estacionar. Não se surpreendeu, ela era o retrato de tantas outras mulheres que, novas ainda, tinham sido colocadas de lado por quem não as soube cuidar ou que as tinha lançado prenhas ao sabor da sorte.
Acabou por meter conversa com ela, também sem o programar, aconteceu, um dia qualquer, enquanto o seu schnauzer cativou a atenção da miúda. Trocaram duas palavras, ou três, à cerca da intimidade entre cães e as crianças.

Desde aí cumprimentavam-se sempre, na simplicidade dos gestos do dia-a-dia, como quando se cruzavam na rua, ou no parque, e sempre, quando e porque a filha se perdia em carícias mútuas com o schnauzer.
Uma tarde, aceitou sentar-se na sua mesa na esplanada do parque, oportunidade conferida pela sugestão dada à pequena de passear o cão, à volta do jardim, passeio que aconteceu, pelo entusiasmo e mão firme da garota, ali mesmo ao alcance da vista de ambos. Ela aceitou um café, depois a garota veio e pediu uma água, e o cão teve direito à sua medalha de bom comportamento, um biscoito.
Falaram de banalidades e das suas vidas tão fotocopiadamente iguais às de toda a gente que nem valia a pena referir o que quer que fosse, mas eram as suas vidas.

Veio o tempo quente, e sucederam-se os encontros e as conversas proporcionadas pelos passeios no parque, com a filha a crescer, Verão após Verão, entraram no quotidiano um do outro. Passaram-se a tratar pela segunda pessoa do singular. Às páginas tantas deram por si a trocar ocasionais almoços ou jantares, na casa de um e do outro.  Já se consideravam Amigos.

Um dia, tinha a garota uns 11 anos, coloca-lhes uma pergunta que os deixou embaraçados e sem saber o que responder: vocês são namorados?

Na verdade as palavras, e a resposta, perderam-se na atrapalhação do embaraço da pergunta.
Se calhar por isso, ou não, algo mudou neles. Embora sentissem que já se conheciam bem, tinham confiança um no outro, no olhar de ambos, algo tinha mudado. Passaram-se a olhar de forma diferente. O toque da face quando se cumprimentavam sentia-se mais quente.

Até um dia, por sinal de noite, em que ele preparava o prato preferido da garota, e dele também, um spaguetti bolognesi. Na azáfama da cozinha dele, apertada de espaços, as suas mãos, tocaram-se molhadas no lava-loiças. O toque foi quente e sem querer, mas o sentir foi intencional.

Por breves segundos os dois corpos encostaram-se diferentemente, e ambos olharam as suas mãos que se entrelaçavam debaixo da torneira da banca, em esfregada sofreguidão de sentir.
O esparguete passou-se e o molho quase queimava, sendo preciso alguns truques de algibeira e alguma boa vontade a comer, para salvar o jantar.
Não conseguiu comer direito,  ele, ela ganhou apetites e repetiu o prato.
Depois de jantar foi levá-las a casa, alguns metros abaixo, debaixo de uma chuva cacimbenta.
Ela encostou-se a ele e apertou-lhe o braço com forças desmedidas debaixo do chapéu de chuva.
Despediu-se da miúda.
Quando a mãe saiu da sala para a levar ao quarto perguntou-lhe: esperas?
Ele sentou-se na sala, nervoso como nunca tinha estado, fazendo um descontrolado zapping que nem dava para entender o que estava a dar em cada um dos canais por onde passava.


Ela entra na sala e senta-se de frente no seu colo, enquanto lhe corta as palavras e a respiração na sofreguidão de um longo e molhado beijo que ele correspondeu, ainda que tentasse concentrar esforços em apagar a televisão e tirar o comando da mão, que tinha ficado debaixo dela quando rebolaram para o lado.
Dali para o quarto apenas trocaram palavras simples, como o apagar das luzes e o trancar as portas entre os tropeções à coisas e os sapatos caídos pelas escadas abaixo, sempre sem tirar a boca da boca e as línguas entrelaçadas numa espécie de nó que não queriam desatar tão cedo.
A sofreguidão levou-os à cama e o toque da roupa foi dando lugar aos apertados e escaldantes afagos da descoberta do corpo de cada um, e do prazer que já não tinham memória de sentir.

A noite perdeu-se numa insónia feita de descoberta, de procura do sentir dos prazeres um do outro, ele atrapalhado pela sua experiência ser fundamentada nas raparigas da vida e das namoradas da juventude perdidas nos meandros do esquecimento, ela pela sua pouca experiência de poucos namoros e de uma relação embrulhada em estupidez máscula e pelo jejuar de muitos anos.
Lá encontraram um meio termo entre aquilo que queriam e o que julgavam ser o que sabiam do assunto.
Não, não ficaram namorados, apenas mais amigos, sempre um perto do outro, dando a cada um distâncias da sua própria maneira de ser, da vida de cada um, como o fizeram sempre até ali, mantendo este prazer descoberto como o encontraram, sôfrego, terno, extasiante, guardado no quarto fechado à chave, sempre às escondidas, sempre seu, secreto.